domingo, 1 de março de 2015

Memória e Cinema...pra começar

Memórias são construções que se inscrevem na pele, formando tudo que somos e determinando nossas ações e sentimentos. Ao olhar pra trás, a história de nossas vidas  por vezes parece fazer sentido após anos de silencio ao examinarmos cada gesto com olhos contemporâneos. Em minha vida, por exemplo, o cinema sempre foi uma grande paixão e o maior dos meus prazeres, associado diretamente a afeto e a lembranças felizes. Lembro de passar a infância na casa da minha vó em santa Teresa e aos sábados e domingos invariavelmente, pegar o bondinho pra ir ate o centro no Metro Boa vista ou no Cine Palácio,


Metro Boavista,originalmente chamado Metro Passeio. Fechou em 28 de abril de 1997.





Cine Palácio,pouco antes de fechar para reformas,em 2008.

ambos cinemas que já não existem mais, embora o palácio,particularmente,conserve sua estrutura física, mas de portas fechadas.Era um passeio de sonho descer as ladeiras de santa e entrar no ambiente refrigerado e confortável das poltronas vermelhas, tapetes espessos e salas grandiosas,de arquitetura art. decó.Pouco importava o filme,o principal era adentrar aquele território sagrado onde o sonho e a realidade se confundiam.Além disso,havia o tradicional baleiro com doces coloridos(sim ,eu sou do tempo da bala boneco )e a diversidade de confeitos que só se encontravam na pequena banca de madeira carregada pelo vendedor conferia caráter extraordinário,especial ao evento de assistir um filme.Mas não era só isso.

Cine Metro Boavista.localizado no centro da cidade .Fechou em 28 de abril de 1997

Havia que se comprar o saco de pipocas,cuja constância era tão importante ao ritual,o habitual cheiro de milho fritando com as latas de leite condensado sobre a carrocinha e os saquinhos de papel ,combinação que normalmente resultava em mãos meladas e correria para lavá-las antes da sessão.me lembro desde então da necessidade de adentrar esse espaço mágico onde a fantasia se aproximava dos olhos,sentada próxima a tios muito queridos que já sabiam ser esse o passatempo preferido para me entreter.Com meus pais,freqüentava amiúde o Paratodos e o Bruni
Méier,ambos no bairro onde moro até hoje

Cinema Paratodos.Inaugurado em 1935.Fechado na década de 1990.




Cinema Paratodos.Inaugurado em 1963.Fechado na década de 1990.



Além disso,havia o maravilhoso cinema Imperator, que faz parte do grupo de saudosas construções que hoje se tornaram igrejas e lojinhas populares.



Cinema Imperator.Vendido em 1990 para virar casa de Shows

Lembro de aguardar ansiosamente o momento de me refestelar na poltrona e pensar como seria o próximo filme ,com a sensação de que nenhum outro lugar me faria tão feliz como o espaço compreendido naquelas salas escuras.Com os anos,as escolhas de filmes começaram a acontecer e, de minha parte,o cinema era sempre o passeio sugerido ou ate mesmo imposto,por qualquer um que me acompanhasse,seja amigo, parente ou namorado. Todos acabavam entendendo que a melhor forma de me fazer feliz era conceder um tempo de introspecção entre as paredes onde estivesse um projetor e uma boa historia a ser exibida. Confesso que mesmo na adolescência, em poucas situações fui distraída por qualquer coisa enquanto o filme passava e somente em uma única vez abandonei uma sala de cinema com meus pais,quando por engano entramos numa sala em que era exibido ou filme Adeus Meninos,certamente um clássico que eu apreciaria hoje, mas não com oito anos de idade, fator determinante para que todos acabassem saindo da sala e indo ate o café da Sloper, também de decoração art decò. Mas foi quando cheguei ao segundo grau, em um colégio publico federal, de filosofia liberal e sem restrições aos alunos, que o cinema fez mais parte da minha vida. Era comum faltar aulas e, acompanhada de amigos, frequentar as dezenas de cinemas que ainda existiam na tijuca nos anos 90. Íamos ao carioca, America, Art tijuca, Bruni Tijuca e todos os outros
que já não mais se encontram por lá a ponto de percorrermos, sem faltar um, toda a programação de filmes em cartaz e não nos restar mais nada a ver.



Cinema Bruni Tjuca.Funcionou de 1968 a 2000.






Cinema Bruni Tjuca.Funcionou até 1997

Dessa época me recordo de ter ficado impressionada com o que me lembro ser o Metro tijuca e sua imensa sala de dois andares, onde exibia-se o filme O Corvo,no qual o ator principal Brandon Lee morrera durante as filmagens. Entramos já no inicio do filme e a atmosfera soturna da historias, associada ao escuro da sala e a trilha sonora, pôs em polvorosa nossos espíritos adolescentes. Também me recordo de um dia memorável que passei em companhia de 4 amigas,quando assistimos Priscila a Rainha do deserto,numa tarde ensolarada em Copacabana no cinema Roxy, indo tomar sorvete no Alex. A vida nos meus 15 anos era uma promessa de liberdade e o cinema continuava representando tudo de maravilhoso que poderia existir, ocupando uma boa parcela daquilo que eu era e o que pretendia ser a partir de então. Alguns anos depois,já no papel de mãe,tive a séria preocupação de mostrar à minha filha todo o encantamento das salas escuras de exibição e tive a grata surpresa de encontrar ,com o passar do tempo,uma companheira de paixão cinematográfica ,embora não tão obcecada como eu,revelando que algumas paixões ( e loucuras)podem ser transmitidas geneticamente, afinal.O cinema ainda faz parte da minha vida mas não da forma como poderia ser,afinal as salas carregadas de historia se foram,com exceção de umas poucas,patrocinadas por grandes empresas ou de pequenas salas como o Cine santa,sobrevivendo as custas de poucos e apaixonados freqüentadores que buscam outras experiências além dos blockbusters em cartaz nas salas “plex” da cidade,eficientes,porem sem história para contar.Decerto podemos hoje debater sobre qualidade de áudio e vídeo,cinema em alta definição e som de ultima geração,poltronas reclináveis,pipocas sempre fresquinhas(de preço exorbitante) e ar condicionado em funcionamento(minha ultima experiência no Paratodos incluiu uma exibição de portas abertas por falta de ar condicionado,o que permitiu vislumbrar os enormes buracos nas poltronas e chão,paredes descascadas e infiltrações que me deprimiram) mas sem a poesia dos lanterninhas e do baleiro,do cheiro de pipoca de panela e das infinitas historias que cada uma dessas salas podia contar.Somos todos órfãos dos cinemas-poeira e de sua infinita magia,fazendo parte de nossas vidas e compondo o quadro cultural e cotidiano de cada bairro,construindo memórias e entrelaçando afetos,nas fotografias que carregamos ao longo da vida.Certamente nossos filhos e netos vem filmes com maior qualidade e com maior conforto, mas lhes falta outro tanto de vivencia em cada experiência, uma vez que todas as salas parecem ser as mesmas e o valor dos ingressos diminuiu a freqüência de muitas famílias, para quem o cinema passou a ser um passatempo proibitivo. Construíram historias de estética perfeita em salas indefectíveis,mas ainda lhes falta o item essencial de cada experiência humana:a alma.